Porque a vida, minha mãe,
há de ser mais que isso, esse caminhar para Deus com tanta tristeza
digna. Essa fina desesperança que compõe a lida. Há de ser mais
que mentira e traição, mais que os outros espiando fechaduras. Há de ser mais que um gozo desprovido de ternura, mais
que a morte que nos nutre de força e amargura. Há de ser o canto
de Elis iluminando salas e os anos das crianças, um jardim de
tulipas, o sono sem culpa. Há de ser o carinho que não fere, não
mata e não estupra. Há de ser caqui desmanchando na boca e o
pássaro que volta pousando na porta. Há de ser a saudade boa das
coisas idas e a garoa noturna que traz falenas, o cheiro terroso das ruas
da chuva que tanto demora. Porque a vida, minha mãe, há de ser o
simples sorriso que aflora, mais que a velhice que nos enfraquece e
nos devora. Mais que esta luminosidade de treva que nos encobre
agora.
photo by Bruce Weber